Heritage Voyage of Return”e a Rota das Pessoas Escravizadas: resgatando memórias para construir futuros
A importância romper com o silenciamento histórico nos 30 anos do projeto da UNESCO e os esforços da The African Pride para reconciliar a diáspora africana com o continente
No mês agosto, em que se comemora o Dia do Historiador e o Dia Internacional de Memória de Tráfico de Escravos e sua Abolição refletimos sobre a importância de nós profissionais, cuja a tarefa primordial é lembrar aquilo que a sociedade tenta apagar.
Como já dizia o historiador inglês Peter Burke, nossa função como historiadores é fazer lembrar aquilo que a sociedade quer esquecer.
Por vezes a memória que, por ser tão dolorosa, incomoda e silencia, como a memória do tráfico negreiro do Atlântico, uma tragédia que durante muito tempo foi sistematicamente apagada no Brasil e em outros países.
Essa máxima se aplica com maestria ao projeto Rota das Pessoas Escravizadas, da UNESCO, que completa 30 anos em 2024.
Lançado oficialmente em 1994, na cidade de Ouidah, no Benin, o projeto, inicialmente chamado de Rota de Escravidão, surgiu com o objetivo de trazer à tona essa dolorosa história, buscando o entendimento, a reconciliação e a cooperação entre os povos que foram violentados por essa prática.
Durante muito tempo, houve uma “tentativa de apagamento” dessa memória, como exemplificado pelo caso do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, que foi o maior porto de entrada nas Américas de escravizados trazidos do continente africano.
Ali, no final do século 18 e início do século 19, chegaram cerca de um milhão e meio de pessoas escravizadas.
No entanto, após um período de apogeu, o Cais foi literalmente soterrado para receber a Imperatriz do Império do Brasil, apagando aquela memória sob pedra e cimento.
Felizmente, essa tendência de silenciamento vem sendo gradualmente revertida.
O projeto da UNESCO tem contribuído significativamente para a produção e inovação do conhecimento sobre a escravidão, a abolição e a resistência desses povos, desenvolvendo uma rede científica de alto nível para apoiar iniciativas nessa direção.
Diversos sítios históricos relacionados ao tráfico negreiro foram (re) descobertos e reconhecidos como lugares de memória da escravidão e patrimônio da humanidade, como a Ilha de Gorée no Senegal, que concentrou o Tráfico Atlântico naquela região; a cidade histórica de Ouidah no Benin, onde foi construído um grande “Portão do Não-Retorno” em memória a essa história; e os Fortes de Cape Coast e Elmina Castle no Gana, que foram construídos entre os séculos XV e XVI com o objetivo de aprisionar e vender as pessoas escravizadas.
No Brasil, o Cais do Valongo também foi tombado como patrimônio da escravidão. Somente em 2011, durante obras de infraestrutura na cidade do Rio de Janeiro, o Cais do Valongo foi redescoberto, revelando a magnitude dessa tragédia.
Com este movimento, estamos avançando para que as memórias não sejam apagadas, mas sim incorporadas com seu devido local de destaque na narrativa global.
A mudança de nomenclatura, de “Rota da Escravidão” para “Rota das Pessoas Escravizadas”, da UNESCO, reflete uma visão mais humanizada e sensível ao sofrimento daqueles que foram subjugados.
Ao olhar para os sujeitos e as famílias que foram dilaceradas por esse processo, a iniciativa busca devolver-lhes a dignidade e a condição de agentes históricos.
Nesse cenário, a The African Pride desenvolve o projeto “Heritage Voyage of Return” (HVR), o primeiro transatlântico de retorno, capitaneado pelo professor e ganhador do prêmio Nobel de Literatura, Wole Soyinka, que busca repensar esse passado doloroso e promover um “retorno” dessa população, saindo da diáspora africana em direção à África Ocidental.
O intuito é transformar os antigos “portões do não-retorno” em portas de chegada, trazendo à tona que esses locais, outrora associados à escravidão, se tornariam agora os pontos de entrada dessa população que um dia foi escravizada.
Dessa forma, a The African Pride busca resgatar essa memória ancestral e estabelecer novas pontes, numa busca dupla: por sua história perdida no Atlântico e por um desenvolvimento em comum com o continente africano.
Trata-se de uma jornada de resgate e reconstrução, não apenas da memória, mas também de laços e perspectivas de futuro compartilhado entre esses povos.
Em 2024, a Rota das Pessoas Escravizadas está celebrando seu 30º aniversário com uma conferência internacional em Havana, Cuba.
Organizado pela UNESCO, o evento terá como temas centrais a resistência, a liberdade e a herança desses povos.
Um dos palestrantes principais dessa cerimônia que ocorre entre os dias 21 a 23 de agosto será o professor Wole Soyinka, que trará insights sobre a esperança de um futuro para a humanidade, onde a diáspora africana possa se reconciliar com o continente africano a partir dessa reconstrução da memória histórica.
O evento encerra no dia 23, reconhecido pela UNESCO como Dia Internacional de Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição.
Assim, a Rota das Pessoas Escravizadas e os esforços da The African Pride representam muito mais do que a simples preservação de um legado histórico.
Eles se configuram como ferramentas vivas de reconciliação, cura e empoderamento de um povo que carrega as marcas indeléveis de um passado violento, mas que agora se ergue, determinado a construir um porvir pautado no entendimento, na solidariedade e no desenvolvimento mútuo entre a diáspora africana e o continente que lhe deu origem.